Uma nuvem no céu
Ouviu, ou alguém lhe disse não sabe bem, que se olhar para o céu pelo menos três vezes por dia, uma pessoa sente-se logo melhor. Passamos muito do nosso tempo a olhar para o chão, enquanto caminhamos, para o lado quando atravessamos a estrada, e para as mãos quando estas seguram os nossos aparelhos electrónicos.
Ninguém anda a olhar para o céu. Dá torcicolos e é perigoso. Temos de olhar é em frente e para os lados. Para baixo, quando queremos evitar...quando queremos esconder. Mas ela tinha ouvido, ou alguém lhe tinha dito, que olhar três vezes ao dia para o céu poderia ajudar.
Ajudar a desfazer o nó na garganta. A apaziguar a dor no peito. A silenciar as vozes na sua mente. Por um pouco, por um minuto, um segundo...
Saiu de casa, com entrada no trabalho às oito da manhã. A luz do dia ainda é pouca, mas o frio é muito. Para a semana vai nevar, disseram-lhe. Ou ouviu, não sabe bem. Coloca o cachecol grosso, preto, à volta do pescoço e mete o carapuço, do casaco, na cabeça. Hábitos. Desce os degraus da entrada do seu prédio e olha em frente, as árvores despidas a chorar de inveja do seu cachecol. Desculpem.
Caminha, de mala ao ombro e cansaço no corpo, em direcção ao portão principal. Não se ouve um único som, para além dos pássaros a discutirem entre si e do seu estômago a roncar. Não houve tempo para pequeno-almoço. Nunca há. Mete os phones, liga-os ao telemóvel e pressiona o botão do play. Agora só se ouve música. De repente, vem-lhe à cabeça. O que lhe disseram, ou talvez o que ouviu ser dito sobre olhar para o céu. Involuntariamente, inclina a cabeça para trás e fixa-o. Ali está, o tal céu capaz de a fazer sentir-se melhor. Ou capaz de a fazer sentir-se menos mal.
Não existe sol no céu que contempla. Tem de existir, pensa ela. Só que ela não o consegue ver, como quase sempre. Não é azul, forte e garrido nem azul, pálido e esbatido. É uma mistura de branco cansado, cinzento tristonho. Como quase sempre. De repente percebe que o que fixa não é o céu, mas sim as nuvens. Todas tão juntinhas, tão iguais que dão a parecer que são o céu em si. Um sorriso amargo surge-lhe nos lábios.
Uma vez.
Corre para apanhar o autocarro e no trabalho corre um pouco mais - para a frente, para trás, com caixas nas mãos, com roupa nas mãos, com dinheiro nas mãos, com papéis nas mãos. Com pessoas à sua frente, ao seu lado, por trás de si, em cima de si. Sem ninguém. A hora de almoço vem e ela, suspira. Sai para comprar comida e desloca-se até à rua. Meio dia, e o sol ainda não brilha. Não precisa de olhar para o céu para o saber, não há luz. Há claridade, claro, mas não há amarelo, laranja ou vermelho. Apenas branco, cinzento, preto. Vai comprar um café e senta-se na esplanada a beberica-lo. No pequeno parque ao seu lado, crianças brincam, gritam, riem, correm.
Que dor de cabeça, que cansaço...nem cá fora me livro das crianças. Que amargo. O café.
O frio já não se faz sentir tanto como de manhã, ou pelo menos ela não o sente tanto agora de tarde, visto que teve tempo e actividade para aquecer o corpo. Será que o céu ainda é feito de nuvens? Olha para cima, relutantemente, como que a adivinhar o que vai encontrar.
Não há nuvens, ou se há, elas continuam tão juntas que parecem céu.
Desta vez não há sorriso.
Duas vezes.
Finalmente, é hora de regressar. Despede-se de todos os que ficam, quando só queria mesmo era despedir-se dela própria. Mais uma vez, coloca o cachecol ao pescoço e mete o carapuço na cabeça. Quando saí à rua pensa, são só cinco e meia da tarde, mas podia muito bem ser oito da noite. O frio voltou, ou talvez nunca tenha partido, e apesar de o dia não lhe ter corrido bem, também não pode dizer que correu mal. Como muitos outros dias seus. Banal. Corre para apanhar o autocarro e quase o perde. Esqueceu-se dos phones em cima da mesa da sala de pessoal. Merda.
Carrancuda, sem os phones, com as vozes dolorosas das pessoas à sua volta, a viagem de autocarro parece durar dez anos em vez dos habituais dez minutos. Quase que se atreve a olhar para cima, para o céu, mas a senhora sentada ao seu lado bate-lhe com a mala no braço e o olhar dela foca-se na senhora invés. Descuidada.
Mais um dia passou. Por entre correrias, refeições não tomadas e outras mal tomadas, por entre conferência telefónica, atendimento ao cliente e mudança de visual da loja. Por entre uma piada e outra que teima em dizer para fazer os outros rir. Faz todos rir menos a si própria. Que piada. Mete o código no portão e a porta abre-se, de forma vagarosa para a deixar entrar. Não que tenha outra opção. Caminha, lentamente, um pé à frente do outro, com pouca vontade. Nenhuma vontade. Chega à pequena rotunda em frente ao seu prédio. Lá estão as árvores, ainda nuas, ainda com frio. Muito frio passam, coitadas. Mas o cachecol é dela. Bom, na realidade, é da sua mãe. Mais razões para não o emprestar ou dar. Quase que tropeça e caí. E nem sequer ia a olhar para cima!
Olha para cima, por falar em não ir a olhar para cima. O céu escuro, o sol que não chegou a ver já desaparecido e no seu lugar, a lua. A sua amiga, essa sim, ela vê todas as noites, umas vezes perto, outras longe, umas vezes redondinha, outras nem tanto. Mas vê-a sempre. Vê um avião que, por momentos, pensou ser uma estrela. Sorri de forma amarga, a sua favorita. Neste céu não há estrelas. Mas...olha melhor. Há uma...nuvem? Pouco saliente, quase que passava por despercebida, mas de facto, lá está ela! Não é branca, ou cinzenta, não tem uma forma certa ou errada, é apenas...algo no céu, para além da lua. E é a única. Dizem que uma noite sem nuvens se transforma num dia de chuva. Ou será sem chuva? Não se lembra. Não interessa.
Três vezes.
Olhou para o céu três vezes num só dia, mais do que por vezes olha numa semana inteira. Enquanto sobe os degraus do seu prédio e procura pela chave na mala, não consegue evitar sentir que, de facto...não se sente particularmente melhor ou pior por o ter feito.
Mas viu uma nuvem. E raios, ela não se lembrava da última vez que tinha visto uma nuvem. Só por isso, ela entra no prédio a pensar...amanhã vou voltar a olhar para o céu mais três vezes.
Quem sabe o que vou ver.