O sol brilhava com tanta intensidade, que mesmo com os óculos de sol postos, não conseguia evitar semicerrar os olhos. No entanto, o calor que este transmitia e que me aquecia o corpo, era delicioso.
A minha cabeça estava pousada no seu colo e todo ele estava estendido ao longo da relva acabada de cortar. O parque estava deserto, à excepção de nós os dois e dos pássaros que voavam por cima de nós. Durante muito tempo, permanecemos em silêncio, não querendo arruinar aquele momento tão único e tão especial.
Senti que as palavras eram ali desnecessárias; o silêncio dizia tudo.
Ouviam-se apenas os pássaros no céu e o abanar suave das folhas das árvores, à passagem do vento. Ouviam-se também dois corações a bater vagarosamente.
O meu e o dele. O nosso.
Naquela tarde, éramos somente um. Um coração, um ser, um amor.
É díficil pôr em palavras aquilo que apenas se consegue sentir com o coração. Mas naquele dia, a vida parecia-me perfeita. Infinita.
A certa altura, senti a sua mão a acariciar-me o cabelo e sorri.
Tentada a olhar para cima para poder ver a sua face, não o fiz de imediato. Deixei-o brincar com os meus pequenos caracóis durante um bocado, e quando senti que ele se tinha então sentado, olhei para ele.
Aquela cara nada deixava transparecer. Não sabia se ele estava feliz, ou não, por estar ali comigo. Não sabia o que lhe ia na mente e muito menos no coração. Nunca fui capaz de o ler.
"No que estás a pensar?"
Ele olhou para mim durante breves segundos e respondeu depois, enquanto fitava o rio que se encontrava a uma certa distância do sítio onde estávamos.
"Em ti. Em mim. Em nós...em como este momento é perfeito e no entanto, sinto que algo não está bem. Não completamente."
O meu estômago agitou-se e a minha garganta começou a secar. Não estava à espera daquela resposta. Sentei-me muito direita naquele chão que minutos antes se assemelhava a uma nuvem e que agora era tão duro quanto a calçada de um passeio.
"Não estou a entender..." A voz falhava-me. Tinha de me recompor.
"Não podemos continuar a esconder-nos."
"Não estamos escondidos" E não estávamos. Não propriamente. O parque era público. Poderia aparecer alguém a qualquer instante. Mas eu tinha-me certificado de que tal não iria acontecer.
"Não quero ter de mentir às pessoas que mais amo. Não quero ter de inventar desculpas de cada vez que quero ver-te ou estar contigo. Não quero ter de conduzir quilómetros e quilómetros até um parque deserto, só para ter a certeza de que ninguém me irá ver a passear à beira do rio de mão dada contigo ou deitado na relva junto de ti. Não quero ter de me esconder, mas acima de tudo, não quero esconder o quanto te amo. O quanto te quero e o quanto preciso de ti."
Sentia os olhos a arder, as lágrimas a assomarem-lhes e não era do vento quase inexistente. Ele insistia neste assunto. E eu...eu tentava evitar que o coração me saísse pela boca de cada vez que ele me olhava daquela forma e me dizia aquelas coisas, que no fundo, eu sabia serem a verdade nua e crua. Não era justo. Não é justo.
"Não podemos e tu sabes bem disso. Não podemos simplesmente aparecer de repente e agir como se fossemos um casal. Porque a verdade é que não o somos"
"Então o que somos?"
A derradeira pergunta, à qual eu não sabia responder. O que éramos nós? O que somos? Tudo, e ao mesmo tempo, nada. Que merda.
"Somos duas pessoas que gostam uma da outra. Que quando estão juntas, viajam para longe daqui, da realidade. Que esquecem tudo e todos à sua volta, e vivem como se fossem os únicos seres vivos à face da terra. Somos algo. Só não sei ao certo o quê..."
Senti-o a afastar-se, apesar de ele não ter mexido um único músculo.
"Não quero não saber. Quero poder falar de ti aos meus amigos e dizer: "A minha namorada é o ser humano mais real e bonito que existe à face da terra." Quero poder apresentar-te formalmente aos meus pais, apesar de eles já te conhecerem, ainda tu eras um mero feto na barriga da tua mãe. Quero poder falar contigo ao telemóvel e dizer-te "Amo-te" sem o medo constante de que alguém para além de ti oiça. Quero abraçar-te e beijar-te em público. Quero ser capaz de passear contigo, de conversar contigo, de sorrir contigo. Tudo, mas sem ter de o fazer às escondidas. Um amor como o nosso não se esconde. Mostra-se ao mundo, não para ser invejado, mas sim para servir de exemplo. Um amor como o nosso não pode ser um tesouro escondido, que se vai esquecendo há medida que o tempo passa. Não! Tem de ser como um pequeno colar de pérolas, um tesouro tão valioso e bonito, que queremos e podemos ostentar ao mundo."
Não sabia o que dizer. Parecia que me tinham arrancado a língua, mas ao passá-la pelos lábios secos, observei que ela ainda lá estava. Estava sem palavras, porque sabia que ele tinha toda a razão, mas não a podia dar.
Permaneci então calada. Ele também. Eu, sem saber o que dizer e ele, à espera que eu dissesse algo.
Passado o que me pareceu uma eternidade, ele levanta-se e começa a caminhar para longe de mim; e como tal, de nós.
"Espera! Onde vais?"
Ele pára a meio do seu percurso e olha para mim. A sua cara outrora morena e repleta de luz, estava agora pálida e as sombras do meu silêncio faziam-se notar nos seus lindos olhos.
"Vou para o carro. Vou ligá-lo e vou esperar por ti. Se te sentares a meu lado até ao sol se pôr, assim que voltarmos para casa, vamos contar tudo a todos. Aos meus pais, aos teus, aos nossos amigos...ao vizinho e ao gato dele. À senhora da padaria e ao homem da mercearia. À D. Helena da loja dos doces e ao Sr.António da sapataria. À criança a brincar às escondidas na rua e à velhota sentada no banco de um jardim a alimentar os pombos.
Vamos encarar o mundo e mostrar-lhe de uma vez por todas o nosso amor. Porque julgo que se tiver de o esconder dentro de mim durante mais um segundo que seja, vou explodir. Vou explodir e aí, já não haverá volta a dar."
Continuou então a andar, deixando-me sozinha naquela tarde solarenga de Primavera.
O sol continuava no céu, mas já não brilhava. O vento, que dantes era apenas uma brisa suave e acariciante, fazia-se agora sentir com mais intensidade, trazendo consigo o frio. Um frio que me percorreu de alto a baixo, aquele frio que sentimos na espinha e que nos faz pele de galinha. O frio do coração.
Fiquei ali, incapaz de me mexer durante bastante tempo...quando as nuvens chegaram finalmente, encobrindo por completo o céu e o sol, decidi levantar-me e correr na direcção do carro.
Tinha sido uma criança estúpida e cobarde. Porque tinha eu ficado tanto tempo a pensar sobre o que fazer, quando o meu coração me gritara muito antes de ele me ter posto entre a espada e a parede, que o mais certo a fazer era gritar aos sete ventos o quanto eu o amava?
Corri como nunca antes tinha corrido na vida. As minhas pernas fraquejaram no último metro, a minha respiração entrecortada secava-me a garganta e toda eu era suor. No entanto, não parei. O sol já não se via, mas talvez ele ainda lá estivesse.
Quando cheguei ao parque de estacionamento, não avistei o seu carro ou a ele. Tinha portanto, perdido a minha oportunidade.
O sol tinha-se posto e ele tinha partido. Talvez para sempre.
Olhei uma última vez para o céu coberto de nuvens e deixei as lágrimas correrem livremente pela minha face. Tinha estragado tudo.
Sobressaltei-me quando senti algo a limpar a lágrima que escorria pela minha face, em direcção ao meu queixo. Baixei o olhar e...lá estava ele.
"Até mesmo nos dias mais cinzentos, o sol se faz notar." Sorriu e apontou para trás de mim. Olhei e lá estavam os últimos vestígios do sol daquela maravilhosa tarde primaveril. Um pôr de sol subtil e que poucos notariam. Mas ele reparou e não virou costas até ao último raio de sol se tornar invisível ao olho humano.
Voltei a encará-lo e senti tudo a desaparecer. As dores musculares da corrida, a secura da garganta e o buraco que se tinha começado a formar no lugar do meu coração.
"Vamos para casa. Vamos mostrar ao mundo o nosso colar de pérolas. Porque ele é um tesouro que merece estar exposto. Intocável pelos outros, mas do seu conhecimento. Porque o nosso amor merece ser tratado como uma bonita e rara peça de arte, em exposição num dos museus mais importantes do mundo: a vida. Não apenas a minha ou a tua, ou até mesmo a nossa. Mas a deles também. A deles que até agora, tem sido privada do privilégio que é apreciar uma obra de arte como é este nosso colar de pérolas.
O nosso amor."