Os Inevitáveis
Há coisas que não se conseguem evitar.
Naquele dia, quando me ligaram do hospital, pensei que o mundo tinha ruido. E a verdade é que o meu mundo ruiu. Aprender a viver num mundo sem ti foi a coisa mais difícil que fiz em toda a minha vida. Lembro-me de sair de casa de pijama - uma t-shirt cinzenta velha, tua, e umas calças de pijama pretas com gatos espalhados por todo o lado. Pantufas nos pés, cabelo no ar e lágrimas nos olhos. Coração apertado, ar a menos, desespero a mais. Empurrei as portas do hospital com as poucas forças que tinha naquele momento e corri para o balcão de atendimento. Dei cotoveladas em tudo o que se mexia e quando cheguei à frente da senhora do balcão, quase esmaguei a minha cara contra o vidro que a separava de mim. Perguntei por ti com a voz rouca - as lágrimas já nem as sentia, de tão parte do meu rosto que já eram. A senhora olhou para mim com um olhar repleto de pena mas eu pouco ou nada me importei - a mulher não me soube dizer nada sobre ti. Se estavas vivo, morto, a dormir, acordado...e eu passei-me. Bati no vidro com a mão fechada em punho e gritei-lhe o teu nome e ela, sobressaltada, lá procurou de novo no computador e finalmente, disse-me que estavas a ser operado naquele preciso momento. Pediu-me também para eu a seguir.
Levantou-se e saiu da sala de atendimento e eu, passando uma mão pelo meu cabelo já por si desgrenhado, segui-a em direcção a uma pequena sala onde havia uma secretária com um monte de papéis espalhados nela, duas cadeiras e um senhor com ar muito cansado, o cabelo grisalho e a habitual bata branca de médico.
Não me sentei como ela me mandou. Só queria ver-te, saber como estavas e eles queriam que eu me sentasse. Vão gozar com outra, lembro-me de ter pensado isso. O médico pediu para eu me acalmar - trouxeram-me um copo de àgua e eu recusei. Só queria saber de ti, não parava de perguntar por ti. Disse o teu nome naquela noite mais vezes do que as que já disse desde o dia em que nos conhecemos até agora.
Eu não conseguia estar quieta. Andei para trás e para a frente naquele escritório até o doutro me expulsar de lá - acho que lhe gastei o chão e ele não gostou. Depois foram os corredores. Acho que naquela noite perdi uns vinte quilos só a andar de um lado para o outro naqueles longos e desertos corredores. Passaram-se horas e eu julguei estar a morrer aos bocados, minuto após minuto, sem saber de uma única notícia do teu estado. Por mim passavam enfermeiras e médicos sem uma única palavra me dizerem e eu só queria matá-los a todos com as minhas próprias mãos. Contudo, ao fim de oito horas, já eu estava sentada no corredor, encostada à parede de olhos fixos na cadeira à minha frente, senti uma mão tocar-me ao de leve no ombro e desviei o meu olhar vazio para encontrar o olhar de uma bonita jovem de bata azul agachada ao pé de mim.
"É a Millie Foster?"
Não lhe respondi. Já não sabia quem era. Millie Foster? Quem era essa gaja? Certamente que não era a jovem de olhar perdido sentada no corredor de um hospital cujos funcionários eram uns incompetentes do raio.
"É a namorada do Nate Baxter?"
"Nate!" - Foi tudo o que lhe respondi. Ela sorriu brevemente e agarrou a minha mão, tentado puxar-me para cima. Eu deixei e ela guiou-me até um quarto. Foi como se ela estivesse a guiar uma pessoa invisual - eu estava cega pelas lágrimas e pela ânsia de te ver. Ela abriu a porta do quarto e eu consegui distinguir uma cama, uma máquina, uma colectânea de fios e uma pessoa ligada a esses fios, deitada nessa cama, dependente dessa máquina.
Corri e quase cai - a distância entre nós era tão pequena mas naquele momento foi a maior que já percorri até hoje. Sentei-me à beira da cama, a tua mão na minha, e esperei.
Nunca fui boa a esperar e nesse dia tive de enfrentar a maior espera da minha vida. Naquele dia tive de aprender a viver num mundo sem ti, mesmo que tenha sido apenas por umas horas - pareceu-me uma vida inteira.
Finalmente, abriste os olhos e eu fechei os meus - chorei tanto que acho que as enfermeiras quando vieram ver de ti, pensaram que um de nós tinha feito xixi no chão do quarto..
Aquele foi o momento mais feliz da minha vida.
Até hoje.
Hoje, perante todas as pessoas que amamos, digo de coração cheio que este é o momento mais feliz da minha vida. Olhar para ti e sorrir, poder agarrar na tua mão e dizer-te o quanto te amo e ouvir-te dizê-lo também - não o quanto te amas, mas o quanto me amas a mim. Desde esse dia que acredito que há coisas que não se conseguem evitar. Os acidentes são uma parte dessas coisas e o teu quase te levou de mim. Mas acredito que a nossa união e o nosso felizes para sempre é muito mais inevitável do que aquele acidente o foi - e por isso hoje estás aqui perante mim e perante todos os nossos entes queridos.
Há coisas que não se conseguem evitar... E nós somos inevitáveis.